quarta-feira, 27 de junho de 2007

Sobre gente e pessoas

A alma peca por abandonar o corpo quando a dignidade de ser humano é solicitada.

Aquele sangue é nosso e a mancha que ele produz não sairá de nossa terra, não é lavável, não é renovável, não é desprezível.

Aquela gente sou eu. Aquele outro me tem e não sabe que em seu corpo vigora parte de mim, que o que verte saiu de minhas veias, que o que foi maculado marcou a ferro onde jamais cicatriza.

Somos um e lutamos por ser cada um. Quando não existir mais ninguém, nem aí serei só eu. Já não serei. Já não importará.


A favela está em guerra, a cidade sitiada grita e se (mal)organiza. Meteram o dedo em seu pudim. A guerra chegou aos cercadinhos classe média, mesmo pagando aquele condomínio que custa os olhos da cara.

Aos 19 somos meninos se nosso pai pode nos dar carro e dinheiro. Matamos índio, batemos em qualquer um que não tenha alma como nós. Crianças que precisam de uma lição. Ai, ai, ai, assim não pode!

Aos 16 somos adultos se nossa mãe tem que nos deixar tomando conta dos irmãos menores enquanto trabalha para ganhar um salário mínimo e talvez até ganhar umas porradas de algum playboy antes de voltar para casa.

Somos comoção nacional se altos, belos e fortes.

Somos notinha de jornal se fracos, pardos e pobres.

Estamos doentes... Doentes da doença do eu.

“Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me fez ouvir o primeiro tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina - porquê eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.”

Trecho de “Mineirinho” de Clarice Lispector

foto: Jornal O Globo on line

Um comentário:

Celso Ramos disse...

Chafurdamos no lamaçal do esquecimento....esquecimento de que só há sentido no outro. Mas se o outro adoece e não percebemos a gravidade da doença, adoecemos também em um processo de degradação lenta. Ainda bem que existem aqueles que livram-se das correntes e arriscam a olhar fora da caverna, mesmo corendo o risco de serem massacrados na volta!!!
Gostei daqui....voltarei!!