Leitor poético, teor poético. Entre-caminhos cruzados.
Penetra surdamente no reino das palavras
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Drummond
Importante fala a dos que, atualmente, oriundos de solo brasileiro, podem denominar-se leitores constantes e reflexivos. Embora reflexão seja condição sine qua nom para uma leitura de qualidade, seja de que obra for, esta sofre os filtros que ganhamos durante os anos imersos em uma sociedade de reprodução, de consumo, metafisicamente voltada para si. Conseguir libertar-se destes filtros constitui hoje uma das maiores tarefas do leitor reflexivo e comprometido com a descoberta da obra, e a este leitor chamo, a partir de agora, leitor poético, pois, conforme sua pré-disposição para a abertura, escreve, em uníssono ao autor, a obra lida. Fernando Pessoa discorre:
“Não conheço prazer como o dos livros, e pouco leio. Os livros são apresentações aos sonhos, e não precisa de apresentações quem, com a facilidade da vida, entre em conversa com eles. Nunca pude ler um livro com entrega a ele; sempre, a cada passo, o comentário da inteligência ou da imaginação me estorvou a seqüência da própria narrativa. No fim de minutos, quem escrevia era eu, e o que estava escrito não estava em parte alguma"(Fernando Pessoa – Livro de Desassossego)
Gostaria de destacar do trecho acima as frases “não precisa de apresentações quem, com a facilidade da vida, entre em conversa com eles” e “No fim de minutos, quem escrevia era eu, e o que estava escrito não estava em parte alguma“. A facilidade da vida é expressa por Fernando Pessoa como a disposição necessária para a leitura e a conseqüência disto é a manifestação de uma obra totalmente nova, uma obra que vigora no entre do leitor poético e da obra lida. Entretanto, quem são estes leitores? Como identificar esse leitor dentro ou fora de nós mesmos? Como dito no início, o trabalho necessário para a construção de um ser-poético é um trabalho do qual demanda, entre outras coisas, esforço, auto-conhecimento e daimon, um espantar-se necessário à abertura ao novo ainda que o novo esteja travestido de velho, de já visto. Neste sentido, a poética foca suas atenções e verte seus esforços, a saber: “Ser poeticamente não é pro-curar ou achar um porquê, mas florescer e desabrochar cada um em sua plenitude” (Castro, Manuel ) .
Cabe ressaltar então que o caráter inter-disciplinar do estudo poético busca, pelo diá-logo com a obra artística, essa plenitude e não se prendendo aos limites de uma tradição segmentária-científica jamais encontrará uma verdade metodológica. Mais do que isso, buscará o sentido primeiro, digerindo cada palavra para que esta retorne em forma de amplitude de sentido em um movimento constante pela linguagem. Auscultar a obra de arte é mantê-la viva. Cuidar em permanecer no caminho liminar é cuidar para estar aberto à escuta da linguagem, morada do ser. Há os que questionam aqueles que buscam no poético a via tortuosa para o estudo literário-artístico. Há os que, com os olhos cerrados, negam e ridicularizam esse caminhar que não busca encontrar o destino, que não busca ser classificável ou utilizável. Que encontra no nada mais sentido do que qualquer teoria descritiva. Contudo os que julgam e rotulam – sendo igualmente passíveis de rotulação – preferem, não por ignorância, mas antes por opção, não reconhecer a validade e a importância de um estudo tão estrangeiro aos conceitos pelos quais baseou toda sua experienciação acadêmica.
Qual é a função da obra artística literária – já que não basta escrever para produzir literatura relevante – neste percurso para o entendimento do ser? Primeiramente iremos destituir da obra o caráter de função no sentido utilitário do termo. Uma das primícias básicas para um debruçar-se poético é a recolocação das palavras em seus devidos lugares. O ataque ao metafísico não é um ataque bélico, mas uma necessidade urgente de desvencilharmo-nos das amarras cartesianas; de um sistema dicotômico no qual fomos criados-moldados-treinados. Alberto Pucheu em seu texto Literatura, pra que serve? aponta algumas possibilidade de apreensão:
“A literatura é um caminho vital intensivo e progressivo de vida. Um dos caminhos, um caminho privilegiado. Por esse caminho, chega-se a vida, não como uma última paragem, estanque, a ser atingida, mas como o que já está, desde sempre, presente, em movimento, mas não conseguimos, habitualmente, vivenciar.
...
A literatura se confronta com nossa individualidade, enfrenta-a, ataca-a. Por isso, ainda que em nome da vida, ou melhor, sobretudo por estar em nome da vida, investindo-nos, ela é tão temerosa.
...
Esses são os dois vetores intensivos de vida para os quais serve a literatura: o riso do sempre risível das propriedades individuais e a alegria de um começo vertiginoso.”
Em sua última versão revisada pelo autor, Formação da Literatura Brasileira, de Antônio Cândido, o autor classifica literatura como “um sistema de obras ligadas por denominadores comuns, que permitem reconhecer as notas dominantes duma fase. Estes denominadores são, além das características internas, certos elementos de natureza social e psíquica, embora literariamente organizados, que se manifestam historicamente e fazem da literatura aspecto orgânico da civilização.” Este trecho é parte da introdução do livro sobre a qual o autor faz a seguinte observação “A leitura desta ‘Introdução’ é dispensável a quem não se interesse por questões de orientação crítica”. Seria apropriado afirmar que negamos a validade da definição de literatura proposta por Antônio Cândido? Não. Esta é uma verdade, que se aplica em determinado nível de apreensão da realidade. Aqui, entretanto, o ponto de vista apresentado reduz a presentificação literária enquanto “caminho vital intensivo e progressivo de vida”. A necessidade de moldar um objeto para que este então caiba em sua determinada classificação é um movimento que se demonstra castrador de significados. A similaridade do discurso do professor Pucheu com o discurso poético não o é sem razão, é a comunhão de um pensamento com o ser pensado, onde não busca delimitar a literatura no tempo e no espaço, mas antes abrir a literatura como espelho do ser, convidando quem lê a um questionamento inclusive acerca do que está ali dito.
Encarar a obra transgredindo a norma é prioritariamente um desafio. Para Manoel de Barros,
O sentido normal das palavras não faz bem ao poema.
Há que se dar um gosto incasto aos termos.
Haver com eles um relacionamento voluptuoso.
Talvez corrompê-los até a quimera.
Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los.
Não existir mais rei nem regências.
Uma certa luxúria com a liberdade convém.
Retrato Quase Apagado em que se Pode Ver Perfeitamente Nada
de "O Guardador de Águas"
É nesta tensão que nos abrimos ao caminho pelo entre, a terceira margem onde as palavras dizem a que vieram e esfacela a condição sujeito/objeto. A imagem da clareira, da encruzilhada surge a fim de nos lançar de encontro à linguagem. Escurecer os termos em vez de clareá-los é o benefício que nos dá o poeta (o fingidor por excelência) de podermos, nós, buscarmos em seu texto o nosso próprio texto. Clarear significaria aí informar e apagaria a possibilidade imanente à obra poética. Na teoria busquemos informação, na poesia buscamos sermos lançados na encruzilhada. Pra Pucheu,
“Na encruzilhada, corpo, literatura e vida não manifestam nenhum próprio individual – é o impróprio que ela faz aparecer. Nela a literatura não aparece como mediação em relação a vida, separada de vida.
...
A encruzilhada: a indiscernibilidade experimentada. O que conta portanto, não são os termos – literatura-corpo-vida: o que conta é apenas a encruzilhada, inescapável, a indiscernibilidade experimentada, inadiável.”
Se os entre-caminhos poéticos são os caminhos apresentados como necessários a uma ausculta do ser na obra. Se na literatura manifesta-se a alethéa em seu movimento de velar-se/desvelar-se/velar-se. Se na encruzilhada encontramos o nada, possibilidade de tudo, o leitor poético será um leitor que não necessariamente deverá banir de seu espectro cultural uma apreensão histórico-analítica de uma obra, pois esta está posta. Contudo, não sendo motivo de suas reflexões, saberá per-correr todos os meandros literários, sem entraves pré-concebidos e lançando-se no entre como navegador experiente que navega sob a cortina do nevoeiro. A poética visa o alargamento dos sentidos e não seu contrário, como alguns podem achar. Debruçar-se sobre a obra auscultando o que ela tem a dizer não é uma análise descompromissada e, portanto desprovida de valor. Ao leitor poético é caro um mergulho consciente sem divagações vazias, mas, sobretudo, sem fechar o sentido da obra. Esse limiar, difícil, por vezes, de caracterizar compreende o maior motivo de incompreensão por parte do leitor destreinado que não consegue em uma primeira leitura compreender a abordagem de uma interpretação poética, abandonando-a. Em seu texto Por que ler?, Manuel Antônio de Castro faz referência a um famoso personagem de Rabelais: Gargantua, “através do qual criticou o decorar muito e ter muitos conhecimentos sem qualidade. Por isso dizia que não é preciso ter uma cabeça muito cheia, mas bem feita”. Mais adiante prossegue:
“Para que o ler não se torne inacessível e muito difícil, o leitor deve encarar essas dificuldades com naturalidade, partindo dos significados mais repetidos e simples para os mais ricos e complexos. Mas jamais deve abrir mão da reflexão, da metabolização das palavras e seus sentidos”
A familiaridade que se pode encontrar entre o discurso poético e o discurso filosófico é verídica tendo em vista a acepção original do termo como mostra-nos Heidegger em Que é isto – a filosofia?:
“A palavra grega philosophía remonta à palavra philósophos [que] foi presumivelmente criada por Heráclito. O elemento específico de philein do amor, pensado por Heráclito, é a harmonia que se revela na recíproca integração de dois seres, nos laços que os unem originariamente numa disponibilidade de um para com o outro”
Aliado a esta idéia acrescentamos o sentido de sophia com um saber que não é qualquer saber, mas sobretudo aquele do aedo, do poeta original. Posto isso, é correto ligar o estudo de poética à filosofia fundando assim um diálogo construtivo inter-disciplinar e não nos moldes histórico-filosóficos tão difundidos atualmente. A busca por um saber que vigora na obra, mas não se restringe a ela é, naturalmente, comparável a esta filosofia autêntica, buscada dos pensadores originários
Caminhar no entre sem se deixar levar pelos caminhos dos “ismos” do mercado, não constitui tarefa fácil para o leitor poético. Fernando Pessoa sentencia: “A inacção consola de tudo. Não agir dá-nos tudo. Imaginar é tudo, desde que não tenda para agir”. Sair da inércia, do pré-estabelecido é o primeiro movimento capaz de fazer-nos lançar mão do já dado para o caminho do desassossego inerente a quem saboreia a vida e maravilha-se com ela. Estar na encruzilhada é para este leitor, diferentemente do senso comum, o lugar de uma buscada inquietação. É onde leitor-poético e obra-poética encontram-se dialogam. Ouvindo o silêncio. Vigorando na linguagem.